Créditos/Fonte: Um conto erótico de Marlon
Ele foi na frente, arrastando os sapatos, entrou no quarto e sentou na cama. Começou a descalçar-se e, enquanto o fazia, ele diz:
– Marlon, fecha aí a porta.
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Eu fechei, passei a chave. Eu estava de costas para ele, mas quando voltei com o corpo, ele diz:
– Pense rápido! – e me dá um tapa no rosto.
A primeira reação é revidar. Até pensei em fazer isso, mas foi instintivamente. Logo depois lembrei o porquê dele ter feito aquilo.
– O que doeu mais: o tapa em si ou a humilhação de ser agredido por quem a gente ama?
Eu o olhei nos olhos e nunca chorar me pareceu tão irresistível. Mas consegui conter as lágrimas.
– Responde, Marlon! – pedia ele baixinho.
– Caio… – ele me interrompe.
– Responda!
Não consegui segurar: sentei na cama, apoiei o meu rosto entre as mãos e comecei a chorar baixinho. Devo ter ficado assim por alguns minutos.
Fiquei de olhos fechados, com o rosto tampado. Não sabia mais o que se passava naquele quarto. Por muito tempo foi assim. – parecia uma eternidade. Depois sinto que ele senta ao meu lado e o meu choro cessa um pouco. Tomo coragem de abrir os olhos e olhá-lo na face.
– Desculpa, amor!
– Você ainda não me respondeu.
– Você sabe qual é a resposta.
– Eu quero que você me diga.
Conversávamos baixinho.
– A humilhação.
– Agora pense bem no que você me fez hoje.
– Não preciso mais pensar, já pensei o bastante. Errei muito feio, sei, tenho ciúmes de você. Desculpa!
Ele recomeça a se despir. Tira as meias, a calça, a camisa e pega uma toalha no guarda-roupas. Enquanto isso, eu o assistia sentado na cama.
– Eu vou tomar banho.
– Caio!
– Oi?
– Eu vou dormir no sofá hoje.
– Você vai dormir aqui.
– É melhor… – ele me interrompe.
– É melhor você dormir aqui e não se fala mais nisso. Depois pega uma toalha e vá tomar banho.
Conversávamos em voz baixa e em um tom nada agressivo. Eu estava me contagiando com a camuflagem do Caio e discursava no mesmo tom.
Quando ele saiu do quarto, cheguei à conclusão de que eu merecia uma bronca mais enérgica, um “barraco” de fato. A consciência pesa mais quando erramos e não somos punidos como merecemos. Isso machuca mais a quem erra. É como se a dívida nunca fosse saldada. Fiquei pensando nisso enquanto ele tomava banho. Pensei também no que ele poderia estar pensando, principalmente o que ele deveria estar pensando enquanto tomava o banho.
Quando ele chegou, eu comecei a me despir e peguei a mesma toalha que ele usou. Preferi tomar banho de água gelada, pois eu estava meio febril e o psicológico me afeta muito para que eu fique com febre, é normal em mim.
Quando cheguei ao quarto, não tive clima de deitar na cama. Fiquei um tempo de pé, ao lado da cama.
Quando o Caio se virou entre os lençóis, ele me viu.
– Menino, deita aqui. – com voz de sono.
Eu já ia chorar de novo, mas o Caio percebe e diz:
– Vem pra cama agora; se você não vier, eu não conto uma história para você dormir.
Ele me arrancou um sorriso dos lábios, mas já era tarde: eu já estava chorando outra vez. Mas eu me convenci de deitar na cama. Fui me ajeitando no meu lado, comecei a me enrolar no cobertor. O Caio se aproximou, enfiou o rosto entre o meu ombro e o meu pescoço e ficou me enchendo de beijinhos. Comecei a abraçá-lo. Foi tão bom. Nós estávamos gelados por causa do banho, mas tremíamos por causa da tensão. – pelo menos eu tremia por causa disso. E ficamos abraçadinhos um tempo.
– Sei que você não fez por mal, que foi um momento, uma coisa que subiu… enfim, sei que não foi consciente.
– Mas não tem desculpa, eu fui muito bobo.
– Mas a gente sempre é bobo.
– Você não me perdoou pensando nos meus instintos, te conheço. Por que você me perdoou?
– Me deu muita raiva na hora do tapa, mas aí quando virei o rosto, vi como você ficou. Você… eu odeio você. Você tem essa cara de bebê chorão… eu não resisto.
– Para!
– É sério!
– Eu preferia que você tivesse revidado naquela hora, ou tivesse brigado muito comigo. Parece que eu não fui totalmente perdoado desse jeito, ainda me sinto culpado.
– Isso passa!
– Não quero que isso aconteça de novo. Caio, não deixa isso acontecer de novo entre a gente, por favor!
– Tá.
E dormimos com as pernas entrelaçadas. Senti um arrepio no pescoço. Eram os lábios do Caio me presenteando com mais beijinhos.
– Gostoso!
– Não, você que é. – eu retruquei. Como ele é macio e lisinho… E cheiroso!
– Não, você que é!
Então o primeiro dia do ano foi tranqüilo.
Foi como uma passagem do tempo, era o destino querendo mostrar que eu tinha passado pela fase de transição mais importante da vida de alguém: da adolescência para a maturidade.
Acordei maduro no ano seguinte. Acordei homem ao lado do homem que amava e que na verdade era um rapazinho, mas muito maduro.
Na verdade eu não acordei, quem me acordou foi o Caio. Eu estava deitado no meu lado da cama (homem casado tem muito disso: “o meu lado da cama”) e o Caio no lado dele.
Quando ele acordou, ficou de pé em cima da cama e começou a pular forte para me acordar. Ele poderia muito bem me empurrar de leve e, com palavras carinhosas, me pedir para acordar. Mas isso não era o Caio. Ele tinha que causar, fazer diferente. Ele começa a dar saltos altos e fortes e berra:
– PRIMEIRO DIA DO ANO, PRIMEIRO DIA DO ANO, PRIMEIRO DIA DO ANO!
Eu começo a resistir e me enrolo mais no cobertor. Ele começa a puxar o cobertor e continua pulando na cama:
– MARLON, TXA, TXA, TXA! MARLON, TXA, TXA, TXA! – grita.
– Deixa eu dormir! – imploro.
– NÃO, TXA, TXA, TXA! NÃO TXA, TXA, TXA!
– Caio!
– Primeiro de janeiro! Primeiro de janeiro!
– E daí? É só um dia qualquer!
– Oh! – fingiu voz de ofendido.
Ele então se ajoelha em cima da cama e começa a me fazer cócegas.
– Primeiro de janeiro, vamos acordar, primeiro de janeiro, vamos acordar, está na hora da alegria! – cantarolava ironicamente.
– Caio, vai ver se eu estou dormindo na esquina.
– Tá certo!
Então ele levanta da cama e sai. Pensei que teria um momento de paz, ainda estava cansado do réveillon. Mas ele volta, enfia rapidamente um fone no meu ouvido, tocava um rock metal pesadíssimo. Eu fui tentar tirar, mas ele segurava a minha mão. Ele gritava no quarto, mas eu não conseguia ouvi-lo por conta da música. Ainda bem que sou mais forte e consegui me livrar do metal. Peguei o travesseiro dele e tapei o meu rosto. Tive paz por alguns segundos. Fiquei estirado na Cama.
Como um raio, o Caio arranca a minha cueca e fica “brincando” com o meu pau.
– Olha que coisa mais formosa! Que graciosidade, senhor Pinto do Marlon! – zombava enquanto dedilhava o membro e o saco – Primeiro de janeiro, senhor Pinto do Marlon… você precisa de um nomezinho… hum… – dizia ele com uma voz infantil.
– Caio, me deixa dormir! – eu pedia tentando estar sério, mas não conseguia, eu ria muito.
– Durma, ora. Eu estou falando com o seu pinto. Durma com a cabeça de cima, pois a cabeça de baixo vai bater um papo comigo. – dizia ele com uma voz séria, mas ele voltou a falar de forma infantil – Não é mesmo, senhor Pinto do Marlon? Que nome nós vamos te batizar nesse maravilhoso primeiro dia do ano? Hum… que tal Lion, o Thundercat? Ou que tal… hum… Escrotinho Maroto? Ah, gostei de Escrotinho Maroto.
Eu já não me aguentava de tanto rir. Eu babei o travesseiro todo rindo.
– Escrotinho Maroto é foda! – disse eu rindo.
– Cala a boca, ninguém pediu a sua opinião. Eu estou falando com o seu pinto… quer dizer, com o Escrotinho Maroto. É bom porque o apelido dele pode ser parecido com o seu. Ele pode se chamar Crotinho Mar-mar, ou Crô-crô… Ih, tem um monte.
– Não gostei desse nome, não vou permitir que você registre o meu menino com esse nome.
– Não precisamos de você, não é mesmo Escrotinho Mar-mar? Vamos juntos ao cartório, esfregar a sua cabecinha no borrador do carimbo e fazer o seu RG!
Ele não largou mais o meu pinto. Chamava-o de Escrotinho Maroto o tempo todo, cantava com ele músicas infantis e até mesmo beijinho de esquimó ele fez. Vocês devem estar achando que é tudo invenção minha, não é? Enfim, não consegui mais dormir. Mas o Escroto Maroto também não. Fiquei bem excitado com a brincadeira e o Crotinho Mar-mar começou a ganhar mais vida.
– Escrotinho, você está tomando anabolizantes? Ganhou músculos tão depressa!
– Ele se apaixonou!
– Jura? Por quem?
– Adivinha!
– Hahahahahahaha, chega, não consigo mais ser tão cara de pau!
– Ué, mas agora que o Escrotinho Maroto estava começando a gostar da brincadeira? – eu disse
– Para, pervertido!
– Eu pervertido? Essa é boa!
– Vamos voltar a dormir. – ele disse.
– Isso, vá dormir. Cada uma viu? Você acha mesmo que eu vou deixar você dormir depois de me acordar? – falei.
-Marlon, você ainda está com sono. Basta fechar os olhos e cochilar. Bom dia! – e foi se deitar.
Eu comecei a me encostar nele por trás, comecei a fazer conchinha. Abracei-o e o enchi de beijinhos na nuca.
– Obrigado por me perdoar, viu?
– Viu. Vamos dormir?
– Você já tem mais um fã!
– Quem?
– Não está sentindo o Escrotinho Maroto chamando o seu amiguinho para brincar?
– Hahahahahaha, para!
– Hum, que nome vamos dar para o seu amiguinho?
– Nenhum, cala a boca!
– Hum… que tal Poço dos Desejos?
– Nossa, quando você quer, você consegue ser brega, hein?
– Hum… já sei, vai se chamar Porta-Treco.
– Hahahahahahhahahaahaha, nunca no Brasil. Está louco?
– Vai ser Porta-Treco. Ele gosta de acolher um monte de treco em seu interior.
– Uau! “Um monte de treco”? Comecei a gostar desse nome. – disse ele com uma voz safada.
– Mas o único treco que o Porta-Treco gosta de abrigar é o Escrotinho Maroto. Eles são amiguinhos.
– Sabe o que eu mais gosto no Escrotinho? Ele é fashion, ele sabe se vestir para namorar. Você já viu a coleção de cremes que ele tem?
– Hahahahahahahahahahha.
– É sério! Ums perfumados que eu adoro. É muito Victoria’s Secrets!
– Êpa! Escrotinho é macho, não usa nada de mulher.
– Mas ele espirra como uma. Já viu o catarro dele? É nojento, ele não sabe se controlar, é um nojo só. Porta-Treco me disse que odeia quando Escrotinho espirra.
– Coitadinho do Escrotinho, Sr. Porta-Treco! – disse eu com voz de choro.
E ficamos nessa brincadeira até que começamos a fazer amor no primeiro dia do ano. Ficamos na mesma posição durante todo o ato. Eu o enchia de beijos na nuca, o lambia e sussurrava algumas coisas. Foi gostoso como sempre. Sentia as pernas do Caio se rendendo às minhas.
Ele se enfraquecia nos meus braços, pois eu o abraçava por trás enquanto me introduzia nele, de leve. Começamos a suar na virilha, ele passou o seu braço por cima do meu ombro e me fez cafuné enquanto chegávamos ao clímax. Cheguei primeiro e o ajudei a se masturbar. Não gememos, era dia e não queríamos ser ouvidos. Nós abafávamos os gemidos e ficávamos com mais tesão ainda.
Quando ele gozou na minha mão, se virou, me abraçou. Nos beijamos durante muitos minutos e voltamos a dormir: eu, Caio, Escrotinho Maroto e senhor Porta-Treco estávamos cansadíssimos.
Fizemos uma das coisas que não se pode faltar numa manhã de réveillon para casal nenhum do mundo: amor.
Sei que naquele dia acordei tarde, já era noite. Quando fui à sala, o Caio estava pendurado no telefone. Passei por ele, fui para cozinha comer alguma coisa e voltei para o sofá. Perguntei quem era, mas ele estava muito concentrado no telefonema. Ele me fez um sinal com as mãos para que eu o esperasse desligar.
Mas não demorou muito para que eu soubesse quem era. O Sérgio estava na outra linha. Eles conversaram um montão, o Caio o encheu de dicas e o acalmava a todo o momento.
Parecia que o Sergio tinha gostado, mas ainda estava inseguro. Quando o Caio desligou, veio me beijar.
– Nossa, você escovou os dentes? – exclamou ele se afastando.
– Acabei de acordar!
– Estou vendo. Vá escovar esses dentes e fique cheirosinho para mim, senão não tem beijo nem nada.
– O que o Serginho disse?
– Ah, ele esta todo nervosinho, preocupado se alguém o viu, se os pais dele vão saber e tals.
– Mas ele gostou, claro.
– Claro, há tanto tempo que ele esperava por isso.
– E o Vinicíus? Tem certeza que ele vai ficar na linha? Sabe como é a primeira vez: a gente sempre se apaixona.
– É, eu sei. Mas eu já alertei o Serginho, disse que aquilo não passou de uma ficada. Que ele nunca deve manter expectativas.
– Mas também não precisa ser tão insensível.
– Ah, precisa sim. Se os héteros, principalmente as mulheres, já caem em ilusão o tempo todo, imagina os gays? Temos que ser bem frios e secos por um tempo até achar quem se merece. Lembra como você era todo mimado quando não era assumido? Eu precisei ser bem seco com você naquela época.
– Não precisava lembrar disso.
– Precisava, você nunca pode se esquecer do que te fez crescer. Agora já para o banheiro, lavar essa boca encardida.
Quando voltei, namoramos um pouquinho no sofá.
– Onde estão seus pais?
– Na casa dos meus tios. Aproveitando as férias do meu pai. Se prepare. Sempre que o meu pai entra de férias é assim.
– Hum, então quer dizer que a gente vai ter sempre a casa só para nós?
– Hahahahahahhaha, você que pensa! Na verdade a gente só não foi junto porque dormíamos, mas meu pai vai nos arrastar para todos os lugares.
– Ah, tudo bem.
– Mas hoje a gente aproveita. – fez uma cara de mal.
– Hahahahahahahahahaha.
Mas não fizemos nada demais, estávamos cansados ainda. Namoramos um pouco, vimos um filme e ficamos na sala, comendo pipoca. Depois fomos dormir e nem vimos os pais do Caio chegaremEm fevereiro, bem no início do mês, é o aniversário do meu irmão. Eu pensei muito nessa data, mas não pensei em tentar reaproximação ou algo parecido.
Na verdade eu nunca mais tentaria mais nada com a minha família, talvez até esperasse, mas nada partiria de mim.
De qualquer forma eu não esperaria nada do meu irmão por aqueles dias. Eu sabia que ele não me procuraria mais, não depois do que aconteceu na festa de natal.
Bem, o aniversário dele se aproximava e eu não queria ficar em casa, se por acaso alguém me ligasse. E também porque ficar em casa, mesmo com o Caio do lado, eu iria pensar na data. Então saímos. Fomos para o barzinho perto da nossa casa. Foi legal, fazia tempo que não íamos lá. Estávamos nos divertindo, foi todo mundo, exceto o Sérgio e o Vinícius.
Era um bar muito popular e bem próximo da casa do Caio, ele não queria ser visto ali. Depois de um tempo, o Caio exclama:
– Ai, não!
– O que foi? – perguntei baixinho.
– O seu irmão está no bar com os amigos. Será que ele não sabe que esse bar é próximo da minha casa?
Eu olhei para o bar. Era ele mesmo. E eu conhecia todas as pessoas que estavam com ele.
– Merda! – eu disse.
– Vamos embora!
– Tem certeza, amor? Você não é de fugir desse jeito.
– Eu sou mais sensato que provocador.
O Caio chamou a atenção da nossa mesa.
– Pessoal, vamos embora para outro bar. Esse está inapropriado.
– O que foi, Caio? – perguntou o Tom.
– Só vamos, depois eu explico.
– Tá, então vão pedindo a conta para o garçom, eu vou no banheiro. – e o Tom saiu.
Pedimos a conta e ficamos esperando, torcendo para que o meu irmão não nos visse. Quando o Tom chegou, parecia assustado.
– Olha, vamos logo embora. Isso vai dar confusão!
– O que foi, Tom? – perguntou o Luciano já se levantando.
– Nada, vamos embora logo! – ele disse nervoso.
Era o que mais queríamos: sair logo dali. E foi o que fizemos. Mas não fomos mais para bar nenhum. Fomos para a casa da Claudinha.
No caminho, conversávamos:
– Conta logo, Tom! – pedia o Luciano.
– Não, é que, eu fui ao banheiro e o Ewerton foi atrás. Quando eu estava na pia, ele falou comigo. Ele disse para gente ir embora, senão a coisa iria ficar preta.
– Mas é cada uma, por que você não disse isso quando a gente estava lá?
– E você acha que você conseguiria bater no Ewerton com os amigos dele do lado?
– Mas eu batia. Cada uma!
Mas foi melhor mesmo! – disse o Caio me olhando estranho.
– O que foi, amor? – eu perguntei.
– Em casa eu te digo.
Mesmo indo para a casa da Claudinha, depois desse episódio, ninguém tinha mais clima para se divertir. Fomos para casa.
– Me conta o que foi, amor!
– Eu acho que o seu irmão vai ficar se sentindo mais culpado porque agimos passivamente. Ele disse para a gente ir embora e nós fomos. Ele já está com mal estar em relação a isso tudo. Você vai ver se a consciência dele não vai pesar depois.
Depois de tanto tempo, não era de se espantar que o Caio tivesse razão. Um pouco menos de uma semana depois, o meu irmão me liga. Quem atende é o Caio.
– Amor, é o seu irmão no telefone.
– É?
Eu estava no computador.
– Alô?
– Grande bosta de irmão você é, hein?
– Hã?
– Puta que pariu, por que você não veio me dar os parabéns?
Imediatamente eu tapei o microfone do telefone e comecei a rir. Não sei bem por que isso me ocorreu, mas foi incontrolável. O motivo mais próximo desse ataque de risos foi a cara-de-pau dele em me cobrar isso.
Não ri porque me senti vingado, ou porque eu estava esperando essa ligação.
– Do que você está falando?
– Ah, então você também se esqueceu do meu aniversario não é?
– Não, não esqueci.
– Ah, me sinto bem melhor agora. – disse ele ironicamente.
– O que você quer, Ewerton? Você queria que eu fosse até você e te desse os parabéns? Acho que fiz bem em não fazer isso. Foi o meu presente de aniversário para você. Eu já sou uma vergonha para a nossa família, se eu fosse te dar os parabéns na frente dos seus amigos, o que eles poderiam pensar?
– Realmente, ainda bem que você não foi.
– Pronto, então se sinta presenteado. Espero que eu tenha saído do bar a tempo de nenhum dos seus amigos terem me visto. Mas eu espero também que você tenha se divertido muito.
As palavras eram irônicas, mas a minha voz não era. Eu falava em um tom, digamos, verdadeiro.
– Ah, pode ter certeza que eu me diverti muito. Me diverti muito mais depois que aquele rebanho de viados que estavam com você foi embora.
– Aham.
Ficamos um tempo calados.
– Era só isso? Então feliz aniversário atrasado, Ewerton.
– Vá tomar no cu! – e desligou imediatamente.
Dias depois, eu recebo uma surpresa do Caio:
– Marlon, a gente precisa conversar hoje. – disse ele durante a aula.
– Falar o quê?
– Uma coisa que venho pensando… acho que você não vai gostar.
Pensei mil coisas. Os meus ciúmes me proporcionaram ideias horríveis. Eu pensava que ele poderia terminar comigo, que ele não me amava mais, que ele tinha me traído e que ele iria assumir. Também cheguei a pensar coisas bobas, dizer para mim mesmo que esses pensamentos eram bobos. Mas os meus ciúmes…
A aula terminou e fui logo o puxando para longe.
– Me fala logo, quero saber logo. Me diz! – pedi agoniado.
– Calma, menino, não é nada de grave não.
– E o que é? Me fala!
– Marlon, aquiete-se. Deixe de ser afobado. Quando chegarmos em casa, a gente conversa.
– Não me surpreenda com nada, Caio. Por favor!
No ônibus, eu ficava provocando o Caio para me contar, mas ele é persistente. Quando chegamos em casa, fomos para o quarto.
– E aí, me fala logo!
Ele sentou na cama e eu fiquei de pé.
– Menino, senta. Já disse que não é nada de mais.
– Então diga logo!
– Acho que vou deixar o curso.
– Por quê?
– Gosto muito, mas não sei se é o que realmente quero.
– E o que você quer?
– Acho que Gastronomia.
– Hã?
Eu não aguentei e comecei a rir. Por que eu fiz isso?
– Você está rindo de quê?
– Fala sério, Caio. Gastronomia?
– Por que não? Eu gosto muito, você sabe.
– Sim, mas… sei lá, não sabia que você queria ser chef.
– Deveria saber né?
– Ué, você nunca me contou.
– Não, eu só cozinho para você todo dia. Não sacou o meu prazer em cozinhar? Nunca percebeu isso?
– Percebi, mas… ah sei lá.
– Eu sei porque você riu.
– Não.
– Sim, você riu porque não levou a sério. Não sei se você riu porque achou a minha ideia boba, ou porque acha a profissão em si boba.
Na verdade eram as duas coisas:
– Não, amor. Ri porque pensei que você iria me contar outra coisa.
– Mentiroso! Você acha que não te conheço?
– Ai, amor, desculpa vai! – e fui beijá-lo.
– Não. Sai daqui. Hoje, você dorme sem chamego, viu?
– Ai.
– “Ai” nada, senão você dorme no sofá.
A raiva dele era passageira. Conhecemos-nos muito bem, conhecemos nossos ânimos. Mas não gostei da notícia. Isso implicaria numa “separação”. Eu não queria ter que ir sozinho para a faculdade, nem queria que ele conhecesse novas pessoas.
De início, logo imaginei o tipo de rapazes que frequentam um curso como esse: provavelmente eram gays. Claro, isso é um preconceito meu, afinal, não é porque alguém é cabeleireiro que é gay, ou não é porque alguém é negro que é ladrão, ou não é porque alguém é dono-de-casa que é burro, e assim sucessivamente. Mas vai dizer isso para o meu ciúme!
No jantar, o Caio anuncia:
– Gente, estou pensando em fazer Gastronomia, não sei se ainda quero Marketing. Procurei alguns cursos e já estou vendo alguns vestibulares.
– Vamos perder nossa tia Anastácia. – disse a mãe do Caio.
– Por que você não continua nos dois? – perguntou o pai do Caio.
– Será que dá?
– Se não for na mesma instituição, sim.
– Eu sei, mas será que eu consigo duas?
– Eu acho que sim. Gastronomia deve ser mais prático que Marketing. Acho que você não vai trazer tantos trabalhos para casa.
– Quem disse? Gastronomia tem muita coisa teórica, muita coisa que a gente tem que fazer em casa.
– Mas acho que você consegue fazer duas sim. Mas se Marketing não te satisfaz mais…
– Meu sonho é abrir um restaurante.
Fiquei o tempo todo calado. A mãe do Caio fala:
– Viu só, Marlon? Vamos ter comida profissional em casa!
– É… – eu disse murcho.
– Ih, parece que o Marlon não gosta muito da ideia.
– O Marlon não tem que gostar de nada, oras! – disse o Caio.
– Pois é. – eu disse.
Mais tarde, eu usava o computador para fazer trabalho. O Caio lia na cama.
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– Ficou mesmo chateado comigo? – perguntei.
– Um pouco, mas já passou. – disse ele fazendo charme.
– Eu acho desperdício por um lado. Afinal de contas, você é muito criativo, é inteligente, o Marketing e a Propaganda são a sua cara. Você é um bom aluno.
– Na culinária você também precisa ser criativo e inteligente.
– Eu sei, já percebi que não devo subestimar a profissão, mas é que você é muito bom no que já faz. É o melhor da turma, sem exageros.
– Eu sei, eu amo o que eu faço, mas não amo mais que a Gastronomia. Tem muita coisa no curso de Marketing que não gosto de executar. Gostei muito dos primeiros períodos porque eram disciplinas mais gerais, como ciências que eu gosto, como filosofia, antropologia, sociologia. Mas a parte mais prática eu não gosto, apesar de executá-la muito bem. Já imaginou eu não ter prazer em executar o trabalho?
– Desde quando isso?
– Já faz um tempo que venho pensando. Tem um mês que cheguei a essa conclusão.
– É né? – disse eu me conformando.
– Mas tenho uma boa notícia para você. Na verdade duas: recebi uma proposta de estágio na agência XXX. É um estágio de seis meses, mas se me saísse bem, eles me contratariam. Vou indicar você no meu lugar, não porque você é meu namorado, mas eu confio no seu trabalho. E outra, acabei de decidir que vou fazer os dois cursos, mas se a coisa começar a pesar… bem, você já sabe qual é o curso que vou largar não é? Pelo menos trancar.
– Sei. Quando você recebeu a proposta?
– Ontem. Me mandaram e-mail. Lembra daquele trabalho que a gente fez sobre XXX? Os avaliadores eram eles, aí como tinha os nossos e-mails no trabalho, eles me escreveram.
– Ai, esse meu namorado me mata de orgulho!
– Hahahahahahahahaha, para, besta!
– Viu como você é bom?
– Tá, mas prefiro culinária.
– Tá, né? Fazer o quê? Mas enquanto você não muda de curso, o que você acha de fazer os trabalhos de Marketing, heim? Não precisa relaxar esse curso, até porque você disse que vai fazer os dois, não é?
– Er… eu já fiz há muito tempo.
– Já? – perguntei surpreso.
– Já.
– Me mata de orgulho, e de raiva, e de inveja, e de ódio…
– Não é só porque não gosto tanto do curso que vou ser irresponsável, não é, senhor Marlon?
– Ah, vai tomar no cú!
– Hahaha, se fode aí, otário!
– Cadê, está aqui na sua pasta?
– Não, nem invente de copiar.
– Oh, só um pouco. Estou morrendo de sono e já está tarde.
– Acorde amanhã cedo e continue, oras.
– Vai, eu só quero ler. Não vou copiar não.
– Mas vai parafrasear. Nem invente.
– Odeio você!
– Senhor Porta Treco saberá da sua teimosia. Ele é muito severo com meninos mal criados.
Os vestibulares seriam no fim do ano, ou seja, a vida ainda seria a mesma por um bom tempo. Fui atrás do meu estágio e felizmente consegui. A agência era muito boa. Finalmente iria ganhar minha própria grana. Não era muito, mas logo me ofereci para ajudar a pagar algumas contas de casa.
– Comam logo, senão esfria! – avisou o Caio.
– Pessoal, quero ajudar nas despesas aqui de casa. O que ganho não é muito, é um pouco menos de um salário, mas acho que já está na hora de eu fazer isso.
– Com esse salário, você não ajuda muito, Marlon. É muito mais vantagem você gastar com você mesmo, com as suas necessidades pessoais. – disse o pai do Caio.
– Mas não vou estar ajudando em nada assim.
– Claro que vai. As suas necessidades pessoais também promovem gastos. Quer ajudar? Então gaste com você mesmo.
– Mas… deve ter alguma coisa que eu possa fazer!
– Me leve para jantar, amor. Você estará gastando comigo, olha que sucesso! – brincou o Caio.
– Uma conta de água, a conta da internet. Não sei, qualquer coisa. – eu insisti.
– Filho, não precisa disso. Você não é despesa, é um presente! – disse a mãe do Caio.
Não aguentei e saí correndo da mesa. Acho até que o meu garfo caiu. Corri para o quarto e me enfiei nos travesseiro. As lágrimas brotavam do meu rosto como uma jovem nascente de rio. Era incontrolável. Alguns minutos depois, o Caio foi me ver.
– Amor? – me chamava ele enquanto trancava a porta – O que houve?
Fiquei calado.
– Por que você está chorando? – ele sentou na cama ao meu lado.
– Por que os seus pais são assim?
– Assim como?
– Assim tão bons? Me sinto péssimo, me sinto um aproveitador.
– E quem disse que é ruim se aproveitar dos sentimentos que as pessoas nos oferecem? Eles te ofereceram a casa deles, mas isso não significa só um teto. Significa que eles gostam de você, Marlon. Então deixe que eles façam isso.
– Mas dou despesa sim, mesmo que ela não seja sentida.
– E quem liga para o que a gente não sente? Se as despesas não são sentidas, a gente não tem que lamentar por elas.
– Por que, Caio?
– Olha, meus pais adoram você. Na verdade eles se beneficiam da sua morada aqui. É muito difícil manter um relacionamento homossexual. Esses relacionamentos são muito instáveis, e não é porque nós gays temos instinto de pervertido, é porque a sociedade e todo o resto impedem que a gente seja feliz como a gente bem entende.
– E o que isso tem a ver com as minhas despesas?
– Tem a ver com o fato de que os meus pais se sentem aliviados de eu ter encontrado alguém tão bom como você e manter um relacionamento firme, duradouro. Duvido que as suas despesas sejam maiores que o alívio que eles sentem.
– Mas… ainda me sinto um aproveitador.
– Mas você não ultrapassou nenhum limite. Tudo o que você tem acesso foi te dado de bom grado, foi te dado.
– Eu estou triste porque me sinto bem aqui…
– Eu entendo.
Ficamos um tempo abraçados. Um tempo longo. Era tanto amor, era tanta felicidade que me incomodava.
– Caio?
– Oi.
– A sua mãe me chamou de filho!
– Ai, para. Está me fazendo chorar tambémPelo menos passei a custear meus próprios gastos. Comprar meu desodorante, meu perfume, os créditos do celular, meus livros, materiais da faculdade…
Não sobrava nada no fim do mês. E quem disse que eu achava ruim? Não tem nada melhor que usar uma coisa que você comprou com o seu dinheiro. O seu.
Não tem nada melhor que você chamar algo de seu.
Não sou consumista e, se dependesse do Caio, nem seria capitalista, mas não tem como não gostar de usar algo que você mesmo comprou. Isso ele não poderia negar.
Mas, depois de um tempo, dinheiro parece que não seria o meu problema.
Um dia qualquer, quando a minha aula acabou, avistei o meu pai no estacionamento me esperando.
– Caio, o meu pai está ali.
– Onde? Nossa, é mesmo. Está esperando o quê?
– Estou com medo!
– Medo de quê?
– Sei lá, meu pai sempre me dá medo.
– Vá.
– Vamos comigo.
– Eu não.
– Por quê?
– Seu pai também me dá medo.
Então fui.
– Oi – eu disse.
– Tudo bem?
– Tudo e vocês?
– Você está vivendo como? – não me respondeu.
– Como assim? – estranhei a pergunta.
– Como é que você está comendo?
– Eu moro com o Caio, o senhor sabe disso.
– E quem te sustenta são os pais dele. Você não tem vergonha não?
Não respondi.
– Hein?
– O que o senhor quer?
– Eu não criei filho meu para viver se aproveitando dos outros. Isso me orgulha muito, sabia?
Continuei calado.
– Hein, Marlon? Não vai dizer nada?
– Estou trabalhando.
– Onde?
– Numa agência de publicidade aí.
– O que será que os pais do seu namoradinho devem achar de mim e da sua mãe? Devem achar que a gente está se aproveitando da situação para ter menos despesas em casa.
– A gente nem fala de vocês. – disse como se não fosse nada demais.
– Ah, já esqueceu da gente, então?
– Pensei que eu fosse uma vergonha para vocês. Pensei que nem quisessem me ver mais. Pensei que não fosse mais da família.
– Não somos pessoas ruins.
– Eu não disse isso.
– Você é um mal agradecido!
Fiquei calado.
– O aniversário do seu irmão foi por esses dias. Você nem apareceu para dar os parabéns!
– Mas se nem sou mais da família, como é que o senhor pode dizer que ele é meu irmão?
– É, você dispensa tudo o que já fizemos por você, não é?
– Eu? Olha, só para te lembrar, não fui eu quem saiu de casa voluntariamente não. Eu fui expulso. O senhor lembra quem me expulsou?
– Todos os seus amigos saíram com o Ewerton. Quer dizer, ex-amigos, porque agora você só tem amigo viado.
– Eu sei que saíram.
– Sabe?
– Ué, o seu único filho não te contou? Ele foi para o barzinho perto da minha casa. Ele estava lá com os amigos bebendo. Quando ele nos viu, porque eu estava com os meus amigos viados, ele deu um jeito de me mandar dizer que, se eu não saísse do bar junto com o rebanho de viados que me acompanhavam, iria ter confusão. E eu saí, né? Não sou louco. Seu filho não contou isso não? Ah, e ainda tem mais, ele me ligou dias depois para me xingar e pedir satisfações, perguntou porque não fui até ele e o desejei parabéns… – meu pai me interrompe.
– Pois é, por que você não fez isso? Vai ver que ele mandou você ir embora do bar porque você não foi lá lhe dar os parabéns!
– Ué, mas nesse mesmo telefonema ele disse que foi bom eu não ter ido, porque senão eu o mataria de vergonha. Eu não entendo.
De tudo o meu pai e o meu irmão queriam me culpar. Se eu não desejei feliz aniversário eu era o culpado, mas se eu desejasse eu o mataria de vergonha; se dou despesas a outras pessoas sou aproveitador, mas eu mesmo fui expulso de casa; se não fosse à festa de natal seria um mal educado, mas indo mataria de vergonha toda a minha família; se digo que não tenho mais família sou um mal agradecido…
– Você nos pregou uma peça muito grande quando decidiu ser gay… – interrompi.
– Não decidi, nasci assim. Sua criação não falhou, não aconteceu nada na minha infância que desencadeou isso… nada, nada. Eu nasci assim.
– Não interessa. A gente não esperava isso de você. Isso não nos agrada.
– Então pronto: por que vocês questionam que eu sumi? Que não os procuro mais? Não é melhor para vocês me terem longe? Agora não precisam mais ter vergonha de mim. Prometo que nunca mais procuro vocês e aí, assim, vocês podem viver em paz. Não é melhor assim?
– Não quero que você prometa porra nenhuma para mim! – disse ele sem gritar, mas de uma forma agressiva – Olhe, vim aqui para dizer que abri uma conta para você no banco. Aqui está o número e o cartão. Pelo menos você não poderá dizer por aí que a gente te deixou largado ao vento. Não somos maus pais. Pelo menos você vai poder se sustentar sem ninguém dizendo que a gente se aproveita. – ele me oferecia um papel e um envelope.
Meu pai dizia tudo isso com dificuldade. Não posso dizer ao certo se ele prendia um choro, mas com certeza ele engolia “seco”.
– Não precisa se incomodar comigo. Não precisa se preocupar com o que vou falar ou com o que vão falar os pais do Caio. Já não disse que a gente não fala de vocês? Do mesmo jeito que vocês não pensam mais em mim, também não penso mais em vocês. Os pais do Caio não se importam, pelo contrário, eles mesmos me disseram que se eu quiser trabalhar só depois de me formar posso fazer isso. E também não ando falando por aí que vocês me expulsaram não. Nem falo de vocês sobre nada para ninguém. Não se preocupe, não precisa se incomodar mais comigo.
Ele ficou impaciente com o meu discurso. Eu não falava em tom irônico, falava como se eu mesmo tivesse pena de mim. E de fato eu não tinha? Eu não conseguia dizer ironias para o meu pai.
– MENINO, PEGUE ESSA BOSTA LOGO E CALE A BOCA! – gritou ele.
– Já disse que não.
Ele não esperou mais. Enfureceu-se, entrou no carro e sumiu.
Mas meu pai não me deixaria em paz tão cedo. À noite, quando Caio e eu já tínhamos chegado em casa, a mãe dele me chama.
– Marlon?
– Oi.
– Seu pai esteve na sorveteria hoje.
– Hã? – estranhei – Por quê?
– Porque ele me pediu para te dar isso. – e tirou do bolso um cartão de crédito.
– Não acredito!
– Ele também me deu a senha. Tome!
Eu peguei o cartão e a senha. Olhava para os dois e não acreditava.
– Não vou aceitar isso!
– Ele me disse que foi na faculdade e que falou com você, mas você foi mal criado. Nós conversamos. Ele disse que não queria que eu e o seu sogro achássemos que ele era um aproveitador, que abandona o filho para os outros criarem.
– Essa é boa, viu? – disse irônico.
– Bem, está dado o recado.
– Amanhã vou devolver isso.
– Você quem sabe.
– Quer dizer, vocês se incomodam se eu fizer isso? Olha, não quero ser aproveitador, como o meu pai me considera…
– Acho que já conversamos sobre isso, não é mesmo?
– Sim, mas… – ela me interrompe.
– Mas nada.
– Vou devolver. Não quero isso.
De noite, quando estávamos deitados e prestes a dormir, Caio e eu conversamos.
– O que você acha, amor?
– Acho que sim.
– Então vou devolver amanhã bem cedo.
– Mas como você vai fazer isso?
– Não sei, ainda.
– Você vai pessoalmente?
– O que você acha?
– Às vezes penso que sim, mas às vezes penso que não.
– Ajuda muito, Caio! – disse brincando.
– Ah, não sei amor.
– Eu sei, eu entendo.
– Quer saber? Vai pessoalmente. Isso é uma coisa séria e você é um homem já. Tem que agir, tratar isso com seriedade. Olho no olho, cara a cara.
– É, você tem razão. Amanhã cedo apareço lá.
E fomos dormir. Nem sei como consegui dormir, mas estava seguro quanto à minha decisão.
De manhã estava pronto, de pé e com a coragem inflada. No ônibus, fui ensaiando o discurso, mesmo sabendo que não conseguiria dizer nada do que combinara. Cheguei ao portão da minha antiga casa. Ela parecia maior do que me lembrava, mas eu também não era mais tão pequeno. Mas nada tinha mudado, aparentemente tudo estava no mesmo lugar, do mesmo jeito. Tive medo, tremi antes de tocar a campanhinha. Uma moça que eu não conhecia abriu a portinhola do portão. Ela colocou os olhos para me ver e perguntou:
– Oi, o senhor quer o quê?
– Oi, eu sou o Marlon. Você sabe quem eu sou?
– Não, eu não.
– Eu sou o filho do XXX.
– Ah, acho que sei quem é você. Espera aí fora, eu vou chamar a dona XXX.
– Tá certo.
Então esperei. Não demorou muito e o portão se abriu.
– Estão na sala. – disse a moça, enquanto fechava o portão.
– Todos estão em casa?
– O Ewerton está dormindo.
– Mas o meu pai… – ela me interrompe.
– Estão na sala.
Ela foi à frente. Era uma moça jovem, simpática, mas um pouco rude. Ela apertava os passos.
Quando cheguei, meu pai estava de pé, de frente para a porta, me esperando. Minha mãe sentada no sofá. Os olhei, eles estavam com os rostos cansados, como se tivessem acabado de acordar, mas pela movimentação dentro da casa, não fora eu quem os acordara.
Eles, de certo, tinham acordado um pouco antes de eu chegar. Não pareciam tão agressivos como eu imaginava.
– Bom dia. – eu disse.
– O que você quer? Não disse que ia esquecer a gente, que nem lembrava mais da gente, que não éramos mais uma família? O que houve?
– Pois é, também disse que não queria dinheiro nenhum. – e tirei o cartão e a senha do bolso.
Eles ficaram calados, se olharam e continuaram calados. Meu pai demonstrou impaciência e continuou.
– Marlon, enfie já esse cartão no bolso.
Comecei a andar, atravessei a sala e pus o cartão, junto com a senha, em cima da estante. Quando me voltava para a porta, ele me pegou pelo braço e disse em um tom baixo, pausadamente, mas agressivo:
– Pegue esse cartão e ponha no bolso agora!
Ele me olhava nos olhos com tanta profundidade… ninguém nunca esteve tão dentro de mim em toda a minha vida. Surpreendentemente não tive medo.
– Me solte. – disse no mesmo tom.
Ele me soltou.
– Pegue o cartão, Marlon.
– Obrigado por tudo, por tudo mesmo. Mas a partir de agora sou eu lá e vocês aqui. Não existe mais nenhum tipo de elo que nos una. O sangue é só um detalhe. Não fui eu quem procurou isso, mas é assim que deve ser.
– Você nos envergonha e ainda nos despreza. – disse, finalmente, a minha mãe.
– Não os desprezo. Se a senhora se sente desprezada, saiba que eu fui desprezado antes.
Quanto ao fato de eu envergonhar, bem, quanto a isso não posso fazer nada. Não tenho culpa se vocês sentem vergonha à toa.
– Mais respeito, rapazinho! – alertou minha mãe.
– Não sei onde está o desrespeito nas minhas palavras. Eu só disse a verdade. Os envergonho? Então por que me procuram?
– Está vendo porque eu não concordei em você dar o cartão para esse menino? Ele nem agradece! – disse a minha mãe furiosa para o meu pai.
– Agradeci, mas, se quiser, agradeço de novo: obrigado pela ajuda, mas ela não é necessária.
Meu pai começou a lacrimejar, mas ele segurava o choro com muito esforço.
– Você é uma desgraça na nossa vida, Marlon. Você estragou toda a nossa família!
– ENTÃO ME DEIXEM LIVRE! – gritei.
Gritei o mais alto que pude. Explodi naquele momento. Não aguentava mais ouvir que eu era a pior coisa que tinha acontecido na vida deles. Não sentia mais nenhuma pena. Se houve alguma pena, algum dia, ela se foi naquele momento.
– NÃO PRESTO, SOU UMA DESGRAÇA, SOU UMA MERDA, UMA PEDRA NO SAPATO DE VOCÊS, O VIADO, O FILHO MAL AGRADECIDO, O MAL CRIADO, O MALDITO, O BASTARDO, O NOJENTO, O PECADOR. SOU TUDO DE RUIM, SOU TUDO O QUE VOCÊS NÃO QUEREM. ENTÃO POR QUE PORRA VOCÊS NÃO SOMEM DA MINHA VIDA? SÓ VIM AQUI PORQUE SOU HOMEM O SUFICIENTE PARA EU MESMO DIZER QUE NÃO QUERO O DINHEIRO DE VOCÊS, NÃO PRECISO PEDIR PARA ALGUÉM FAZER ISSO POR MIM, COMO O SENHOR FEZ! – continuei gritando.
– Saia dessa casa agora, seu maldito! – respondeu meu pai.
– O que é isso? – chegou o meu irmão com cara de sono.
– Já estou indo. – e fui saindo.
– O que esse viado está fazendo aqui? – perguntou meu irmão.
Não dei ouvidos e continuei saindo. O járdim era grande. A casa era grande, então, demorou um pouco até que eu chegasse ao portão. Mas até lá, eu os ouvia berrando, chorando e me xingando com os piores nomes que se pode dar a um homossexual. Quando abri o portão, escuto o meu pai me chamando.
– Marlon!
Olhei para trás, mas não voltei. Fiquei no portão. Acho que eles acharam que eu estava voltando e ficaram calados, me esperando. Mas só olhei para trás e depois voltei a seguir meu caminho. Quando pus os pés na calçada, meu irmão aparece ao portão.
– Ô, seu bosta, papai está chamando!
– O que ele quer?
– Meu filho, ele está chamando, então é para vir.
Fiquei um tempo olhando para o meu irmão. Surgiram mil e uma respostas na minha cabeça, mas decidi fazer o correto. Pelo menos para mim. Entrei.
Eu e o meu irmão fomos andando juntos até a sala, paralelamente. Enquanto não chegávamos, eu perguntei:
– Seu pai me disse que não te dei os parabéns no dia do seu aniversário. Mas você disse para ele que nos encontramos no seu aniversario?
– Cala a boca!
– Você também contou para eles quem foi que começou aquela briga na festa de Natal?
– “Mermão” você quer apanhar aqui?
– Você só consegue resolver as coisas assim? Não tem cérebro para conversar não?
A essa altura já estávamos na porta da sala. Assim que entro, ele me empurra e eu caio no chão. Ele veio para cima de mim, me bater. Mas ele não conseguiu. Meu pai nos apartou.
– Está maluco, Ewerton? – perguntou o meu pai enquanto o segurava.
– Esse menino fica me provocando.
– PARA, EWERTON! – gritou meu pai.
– Mas ele é o culpado e o senhor grita comigo?
– Eu sei que ele é o culpado, mas pare agora!
Ele parou, ficou quieto. Me levantei do chão, me limpei. O meu pai recomeçou a falar.
– Marlon, vamos deixar as coisas claras… – eu o interrompi.
– Vamos! Como foi? O que o senhor disse aí? Disse que “sabe que eu sou o culpado”?
– E não é? – perguntou ele.
– É né? Devo ser. Tudo de ruim que acontece sou eu. Mas o senhor não quer deixar as coisas claras? Ótimo! Vocês dois – apontei com o dedo para os dois – não se dizem homens? – disse “homens” com ironia – Então vamos provar se vocês dois são homens de verdade? Quero ver agora. Aqui e agora. Quero ver se vocês são homens mesmo. Quero ver se vocês são os homens que dizem que são. Começando por você, Ewerton. Diz aí, quem foi que começou a briga na festa de Natal?
– Foi você que me provocou!
– Eu estava na minha, sentado, quieto. Você veio até mim. Você. E ficou me provocando, me falando coisas no ouvido. Eu nem encostei em você, você quem me bateu. Eu nem revidei e tão pouco comecei. Vai negar?
– Vou!
– Parabéns, Ewerton! Você pode mentir até quando quiser, enganar quem quer que seja, mas que fique claro aqui para nós dois: você é um medroso, fracote. Não tem nem a coragem de um homem de verdade de assumir o que faz. Isso aí o que você fez é coisa de homem? Isso aí é coisa de vagabundo. E você ainda se diz homem?
– MARLON… – gritou o meu pai, mas não o deixei continuar.
– Calma, ainda não acabei. Vocês não sabem gritar, me xingar sempre que querem? Por que não podem escutar umas verdades um pouco também? O senhor tem medo de quê? Está com medo de um viado? O senhor com medo de um viado?
– Você está na minha casa!
– E daí? Vocês dois só são homens quando estão na rua? Não podem ser homens aqui também não? Ainda não acabei. Muito bem, senhor Ewerton. Parabéns! Me provou a falta de hombridade que há em você!
– CALA A BOCA, SEU BOSTA. VOCÊ NÃO SABE NEM O QUE ESTÁ FALANDO! – gritou meu irmão.
– “CALA A BOCA” O CARALHO! Pois bem, no primeiro teste de homem você foi reprovado… – ele me interrompe.
– Ok, fui quem provoquei sim e fui eu também quem bati. Satisfeito?
– Não pergunte para mim se estou satisfeito. Pergunte para os seus pais. E aí, vocês estão satisfeitos com o único filho que vocês têm? Um filho que age desse jeito? Agora vamos para o segundo teste: quem foi que você expulsou do bar onde rolava a sua festa de aniversário?
– Papai já falou disso. Não é novidade!
– Não é novidade porque eu tive que dizer. Eu. Você não foi homem o bastante para você mesmo dizer, não é? E ainda teve a cara de pau de me ligar para cobrar “parabéns” depois de ter me expulsado e expulsado os meus amigos!
– Seus amigos boiolas?
– Pois fique você sabendo que aquele bar é na esquina da minha casa.
– E daí? Vou onde eu quiser ir.
– E eu também! E já que não sou mais seu irmão, por que me ligou para cobrar? Está com saudades?
– De você? Saudades de você? É para rir?
– Não sei, quem ligou foi você, implorando os “parabéns”!
– Implorando?
– E não foi? Só pode ser saudades!
– CHEGA, MARLON! – gritou meu pai.
– Não, não chega! E o senhor? Hein? Já disse antes e repito: não preciso do seu dinheiro. O-B-R-I-G-A-D-O. Mas eu não preciso dele. Sou homem o bastante para trabalhar e me sustentar sozinho, eu me viro só. Você me expulsou daqui, então faça o serviço completo!
– Você se vira sozinho? Você está morando na casa dos outros, comendo a comida dos outros!
– E daí? Não sou mais seu filho. O que você tem a ver com isso?
– Me dá vergonha… – interrompi.
– Se vire com a sua vergonha. Eu não sou mais dessa família, não devo mais satisfações e estou pouco me lixando para vocês e o que acontece aqui. Então seja homem e faça o mesmo. Vire a página. Está sentindo vergonha por quê? Não sou mais seu filho, VOCÊ DISSE ISSO. É tão frouxo que não consegue parar de me amar? Isso é coisa de mariquinha!
– Rua, Marlon. Eu quero que você morra.
– É bom mesmo que eu morra. Quero morrer daqui a pouco, saindo dessa casa. Tomara que um carro me atropele e esmague a minha cabeça na pista. Vou adorar que você morra sentindo culpa da minha morte. Odeio você. Você é o culpado de eu ser gay. Se ser gay é nojento para você, saiba disso: a culpa é sua, porque eu nasci assim e, se eu nasci assim, o único culpado é você!
E saí para a rua torcendo para encontrar um carro em alta velocidade.
Eu saí desorientado da casa da minha família.
Mas não. Não queria morrer. Queria que eles me deixassem mesmo em paz, pois eu não sentia mais nenhuma falta deles. Queria viver livre como estava vivendo.
Percebi tudo. Na verdade, eu entendi tudo. O que o Caio me dizia era verdade, mas eu ainda teimava em desconfiar.
A minha família me amava, mas não conseguia me aceitar, então para eles era difícil me ter longe, ter a minha indiferença. Mas me ter por perto era pior ainda para eles. Eu acho que consegui explicar bem essa relação, mas vou ser bem repetitivo:
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